Friday, December 01, 2023

Subnotas 35 Homenagem para meu pai, Daniel da Luz

Réquiem

Hoje faz quatro anos que meu pai faleceu, após uma luta renhida contra um tipo raro de câncer. Daniel da Luz era um homem loquaz, que gostava de contar vantagens, mentiras e causos. Para manter a memória dele viva, essa coluna é toda em homenagem a ele. Faz sentido uma coluna de humor político falar dele, afinal ele era engraçado e foi filiado ao PDT, PMDB e MDB, partidos pelos quais foi tesoureiro e candidato a vereador. Não herdei o carisma e o humor dele; bem, não sou tão hilário quanto, mas algo disso herdei, vai. 

Politicamente incorreto

Ressalto sempre que odeio esse termo tanto quanto a expressão politicamente correto. O mundo não só tem muitos tons de cinza entre ambos como também uma infinidade de cores. Entretanto, acho que poucos termos definem tão bem como meu pai era. Era politicamente incorreto a ponto de ser constrangedor para todos a sua volta, mas geralmente ele não estava nem aí. De forma geral, as pessoas que conviveram com ele estavam acostumadas com as infâmias. Se não se acostumassem, iriam se chocar e se afastar em minutos. Muito do que ele dizia é impublicável, mas vou publicar algumas das tiradas dele abaixo. Se quiser continuar a leitura de agora em diante, problema seu. Eu avisei. De qualquer forma, são as mais levinhas.

Carnaval de verdade

O comentário dele que julgo mais engraçado a respeito da política local foi, salvo engano, em 2016. Ele era muito crítico da gestão do ex-prefeito Eloísio do Carmo Lourenço. Eu não partilhava da maioria das opiniões dele a respeito, até porque as críticas que eu tinha eram outras, mas isso não vem ao caso. Para meu pai, o ápice da ruindade foi quando ele ficou sabendo do Carnabebê. Ele julgava isso um absurdo. "É por isso que ninguém mais curte carnaval em Poços. Que Carnabebê o quê! Carnaval não é para família. Carnaval bom de verdade é quando saem dois ou três esfaqueados da festa!", exclamou, indignado. Talvez tenha sido o dia que ele mais me fez gargalhar.  

Súcia

Em 1996 eu estudava na Unesp, em Bauru, e vim passar um final de semana em casa. Fiquei chocado: estava cheia de colantes da candidatura do Paulo Tadeu à prefeitura. O choque foi porque à época meu pai havia se tornado muito conservador e de repente a casa estava com adesivos do candidato do PT na janela. O PMDB estava apoiando Paulo Tadeu e, portanto, também meu pai. Passados o susto e a eleição, ele sempre propagou que ela foi roubada pela corriola dos coronéis. Aprendi essa palavra, corriola, com ele. Melhor xingamento que conheço. E noto agora que ele evitava fulanizar a questão, afinal ele gostava do Geraldo Thadeu pessoalmente. 

Pachequice

Por influência do ex-vereador Waldemar Lemes Filho e do falecido Mané Renda, ambos amigos e correligionários, meu pai votou em Rodrigo Pacheco para deputado federal em 2014. À época o presidente do Senado, que faz jus ao personagem homônimo de Eça de Queirós, era filiado ao PMDB. Ele nunca cumpriu a promessa de visitar Poços e bandeou-se para outro partido. Meu pai lamentava muito esse voto dado a Pacheco, que ele considerava um grande (expressão limada a conselho do meu advogado). 

Daniel Souza Luz é revisor, escritor e jornalista

Foto que tirei do meu pai, na Câmara Municipal de Poços de Caldas, votando em eleições internas do PMDB em dois de dezembro de 2017. À direita dele o ex-vereador Waldemar Antônio Lemes Filho. 


VERSÃO EDITADA PARA O JORNAL

Esta versão não passou por qualquer tipo de censura ou algo assim. O problema é que o texto original estava muito extenso para o espaço da minha coluna e tive que condensá-lo. Esta versão editada foi publicada na página 9 da edição 8132 do Jornal da Cidade (de Poços de Caldas/MG) em primeiro de dezembro de 2023.

RÉQUIEM

Hoje faz quatro anos que meu pai faleceu, após luta renhida contra um tipo raro de câncer. Daniel da Luz era um homem loquaz, que gostava de contar vantagem e mentiras. Para manter a memória dele viva, essa coluna é toda em homenagem a ele. Faz sentido uma coluna de humor político falar dele, afinal ele era hilário e foi filiado ao PDT, PMDB e MDB.

POLITICAMENTE INCORRETO

Ressalto sempre que odeio esse termo. Entretanto, acho que poucas expressões definem tão bem como meu pai era. Muito do que ele dizia é impublicável, mas vou publicar algumas das tiradas dele abaixo. Se quiser continuar a leitura de agora em diante, problema seu. Eu avisei.

CARNAVAL DE VERDADE

O comentário dele que julgo mais engraçado a respeito da política local foi, salvo engano, em 2016. Ele era muito crítico da gestão do ex-prefeito Eloísio do Carmo Lourenço. Para meu pai, o ápice da ruindade foi quando ele ficou sabendo do Carnabebê. Ele julgava isso um absurdo. "É por isso que ninguém mais curte carnaval em Poços. Que Carnabebê o quê! Carnaval não é para família. Carnaval bom de verdade é quando saem dois ou três esfaqueados da festa!", exclamou, indignado. Talvez tenha sido o dia que ele mais me fez gargalhar.  

SÚCIA

Em 1996 fiquei chocado: a casa estava cheia de colantes da candidatura do Paulo Tadeu à prefeitura. O choque foi porque à época meu pai havia se tornado muito conservador e de repente havia adesivos do candidato do PT na janela. O PMDB apoiou Paulo Tadeu e, portanto, também meu pai. Passados o susto e a eleição, ele sempre propagou que ela foi roubada pela corriola dos coronéis. Aprendi essa palavra, corriola, com ele. Melhor xingamento que conheço. E noto agora que ele evitava fulanizar a questão, afinal ele gostava do Geraldo Thadeu pessoalmente.

PACHEQUICE

Por influência do ex-vereador Waldemar Lemes Filho e do falecido Mané Renda, ambos amigos e correligionários, meu pai votou em Rodrigo Pacheco para deputado federal em 2014. À época o presidente do Senado, que faz jus ao personagem homônimo de Eça de Queirós, era filiado ao PMDB. Ele nunca cumpriu a promessa de visitar Poços e bandeou-se para outro partido. Meu pai lamentava muito esse voto dado a Pacheco, que ele considerava um grande (expressão limada a conselho do meu advogado). 

Daniel Souza Luz é revisor, escritor e jornalista

Friday, September 22, 2023

SUBNOTAS 27

Minha vigésima sétima coluna Subnotas foi publicada na página 9 da edição de hoje do Jornal da Cidade (de Poços de Caldas/MG). Como havia afirmado antes neste blog, não pretendia ficar atualizando-o com ela, mas a publico aqui porque preciso fazer uma errata. Depois que a enviei para publicação a Secom da prefeitura de Poços divulgou dois releases falando sobre uma ação ecológica que não foi divulgada previamente, além de esclarecer sobre um maior apoio a um evento organizado por ONGS. Eu critiquei a inexistência da iniciativa e o apoio limitado. Depois, com as novas informações, tenho que dar o braço a torcer. No entanto, no texto abaixo, já atualizado, faço uma crítica à falta de divulgação prévia e também uma observação sobre um detalhe curioso. Portanto, as duas primeiras notas foram modificadas para contemplar a verdade; as demais seguem inalteradas. 

NADA A COMEMORAR

Ontem, 21 de setembro, foi Dia Nacional da Árvore. Um anátema nesta cidade. Até o ano passado a prefeitura sempre divulgava que faria a distribuição de mudas de árvores frutíferas na data. Nesta semana pesquisei nos jornais locais e no site do município e nada encontrei a respeito. Fizeram a distribuição ontem, é verdade, mas sem divulgação prévia. O release foi distribuído posteriormente.

JUSTIÇA SEJA FEITA

Hoje acontece o Dia Mundial Sem Carro dentro da programação do Giro Sustentável e haverá distribuição de mudas. Há o apoio da prefeitura, tudo bem, mas a ação, na verdade, é uma iniciativa da Associação Poços Sustentável e da ONG Planeta Solidário. Esta última é a responsável pelo ajuizamento da ação de obrigação que foi acatada pelo judiciário, que determinou a suspensão das árvores na Avenida João Pinheiro. Deve ter passado despercebido nos corredores do poder.

DE BOAS INTENÇÕES...

O professor Cleiton Corrêa, numa análise arguta, notou que a redução do tempo de recontratação de educadores em Poços de Caldas pode ter sido feita com boa intenção, mas acaba sendo mais um fator para a desvalorização da educação, pois é um mero paliativo que contribui para adiar a realização de concursos. Aliás, é fácil notar que a gestão “técnica” só empurra esse problema com uma avantajada barriga que se dilata por mais de seis anos, salvo engano.  

NÃO É BOA IDEIA DAR IDEIA

Corrêa ironiza o pendor que a administração direitista tem por traquitanas tecnológicas para maquiar problemas pedagógicos graves (do tipo considerar que escola cívico-militar seria algo interessante de se implantar aqui). ´”Não me surpreenderá se daqui a pouco alguém, com todas as manobras discursivas possíveis, sugerir um aplicativo para que a secretaria [municipal de Educação] possa chamar educadores tapa-buraco na medida da necessidade”, dispara. O pior é que é capaz mesmo de algum empresário amigo do rei levar a sério, desenvolver um app assim, conseguir um contrato sem licitação e ainda apresente a ideia como case de sucesso em alguma universidade particular com mensalidades proibitivas.

SUBCELEBRIDADE

Tem algo midiaticamente mais indigno do que ser uma dessas subcelebridades de internet? Sim: pagar para sair numa revista picareta.

Daniel Souza Luz é revisor, escritor e jornalista


Tirei esta foto, com um celular, na porta da minha casa em 22/09/2023.


Tuesday, August 29, 2023

Homenagem ao centenário de Millôr (Coluna Subnotas 22)

Há muito tempo, por uma série de razões insondáveis até para mim e algumas outras muito práticas, não publico minhas colunas escritas para o Jornal da Cidade (de Poços de Caldas/MG) neste blog. E nem publicarei as que vão desde a terceira edição até a vigésima primeira. E nem sei se publicarei outras aqui futuramente. Quem sabe algum dia as reúno num livro. No entanto, publico esta para fazer duas erratas: a paródia intitulado Chato foi bem chatinha e saiu errada no jornal (comi algumas palavras na digitação; corrigi a tempo, mas mandei o arquivo sem salvá-lo, então foi com o erro) e a nota ABL saiu muito cheia de vírgulas, então pus um parênteses nela para explicar melhor que é a única que não se trata de um pastiche/paródia. Este coluna foi publicada na página 8 da edição 8065 do jornal, no dia 18 de agosto de 2023, em homenagem aos cem anos de nascimento do Millôr, cujo aniversário seria comemorado dois dias antes caso ele ainda estivesse vivo.  

SUBNOTAS 22

MILLORIANA

A coluna de hoje será em homenagem a Millôr Fernandes (1923-2012), cujo centenário seria comemorado na quarta-feira desta semana. Farei alguns pastiches dele, que era um grande frasista. Ou aforista, como preferirem. Creio que se ele estivesse vivo não se incomodaria. Ou talvez sim: ele tinha fama de azedo, algo que eu percebia nas entrelinhas, mas já parafraseando-o, isso não o interessaria, pois está morto. “Todo homem nasce original e morre plágio”, afinal. Não é nada muito rigoroso. Li mais e fui mais influenciado pela geração que o teve como modelo (Angeli, Laerte e cia).

JORNALISMO

Para todos os poderosos, jornalismo é armazém de secos e molhados.

PARTICIPAÇÃO ESPECIAL MUNICIPAL

Livrai-me da justiça, que das árvores me livro eu.

LITERALMENTE

Roube ainda hoje. Amanhã pode ser ilegal. (Essa eu roubei de forma literal, para encher linguiça).

ATUALIZAÇÃO

Celebridade é qualquer idiota com milhares de seguidores.

CHATO

Indivíduo que tem mais interesse em nós do que nós mesmos.

FUSÃO DE AFORISMOS

O ser humano é um macaco inviável.

MERITOCRACIA

Se eu ganhasse o que acho que mereço não sobraria dinheiro para ninguém.

ONISCIENTE

Quem tudo sabe informou-se muito mal.

SINCERIDADE

Cochicha na orelha do livro o que achou da história.

IMORTAIS

Os escritores mortos são muito melhores do que os vivos graças a IA e continuam a não contribuir para a previdência.

ABL

Uma constatação (não é uma frase do Millôr, que não gostava da Academia Brasileira de Letras): ali os imortais estão enterrados em mausoléus malcuidados. Desídia do Merval Pereira, levando em consideração a teoria do domínio do fato.

Daniel Souza Luz é revisor, escritor e jornalista

Millôr Fernandes em 1957. Foto de domínio público, autor não creditado, acervo do Arquivo Nacional.


 

Tuesday, April 04, 2023

Subnotas 2


 AGRONEGÓCIO

Luan Santana e sua noiva (agora esposa) poços-caldense estavam certíssimos de se casar num lugar afastado e não numa igreja no centro. Provocaria muito trânsito, barulho e talvez fosse até mais tarde. Devem ter pensado na pobre cerimonialista, que acabaria recebendo uma ligação pedindo 27 convites.

QUEM PAGA O APAGADOR?

Uma pichação com os dizeres “Sérgio Motosserra” e “MotoSérgio” podia ser vista, neste final de semana, num muro próximo à rotatória entre os jardins Europa e Vitória. Na segunda-feira já havia sido apagada.

PROVOCAÇÃO

As mesmas pichações ainda podem ser vistas num muro em frente à Coopoços, na rua Rio Grande do Norte. “Geopoliticamente”, vamos dizer assim, são mais ousadas. 

NOVILÍNGUA E DUPLIPENSAR

Uma cidade onde crime ambiental é infração e censura é não merecimento de destaque. George Orwell ficaria orgulhoso. Ou não. 

LIBERDADE DE IR E VIR

Chegou aos meus ouvidos que um atleta que tem o hábito de subir a trilha do Cristo foi abordado por dois fulanos na Fonte dos Amores dizendo que ele não podia mais usufruir da trilha. Então ele disse que corressem atrás dele, pois ele sempre subiu por ali correndo. E deixou os sujeitos no vácuo. 

SPOILER

Estou lendo um livro do Marcos Bagno, Memórias de Eugênia, que conta a história de uma comunidade que se une para salvar uma pitangueira centenária, um marco da cidade. Ainda bem que não é ambientado aqui, pois já saberia o fim. 

RARARÁ

Quando comecei a ler a coluna do humorista José Simão na Folha de S. Paulo nos anos 1990 eu logo gostei, dava umas risadas, mas me incomodava com a repetição de piadas. Quando entrei na faculdade de Jornalismo um veterano argumentou que a coluna era diária e Simão não conseguiria inventar tantas piadas novas de um dia para o outro. Justo. A minha é semanal, uma vantagem. No entanto, de certa forma, repeti a piada que fiz na primeira coluna com o filme do Chico Bento na nota acima, dessa vez citando um livro. É que fatos tristes ficam se repetindo aqui. E então cabe o clichê: é rir para não chorar.


Esta coluna foi publicada na página 10 do Jornal da Cidade (de Poços de Caldas/MG) em 31 de março de 2023. 





Friday, March 24, 2023

Subnotas

Febeapoços

O grande Sérgio Porto, sob o pseudônimo Stanislaw Ponte Preta, escrevia o famoso Febeapá – Festival de Besteiras Que Assolam o País. Em homenagem a ele, falecido em 1968 e cujo centenário de nascimento comemora-se neste ano, fiquem aí com meu singelo Festival de Besteiras Que Assolam Poços de Caldas.

Big Brother is watching you

O prefeito escreveu candidamente em postagem que pretende “eliminar” os adversários. Será que vai ter ajuda do vereador fuzileiro que compõe sua base?

Cortando o mal pela raiz

As árvores centenárias estavam podres e podiam cair na cabeça de alguém? A ver. Mas tem uma casa amarela nas mesmas condições e ninguém fala nada.

Cidade cenográfica

Cidade de novela será inspirada no município. Imagina só Livre Para Voar, originalmente exibida nos anos 1980, sendo refilmada neste exato momento: o Tony Ramos de boa no seu vagão e tem que sair de lá correndo porque estão passando o trator em tudo.   

Uai, sô

Especula-se se o filme live-action do Chico Bento será rodado em Poços de Caldas, como foram os da Turma da Mônica. O cerne da trama: Chico Bento tenta convencer Nhô Lau a não cortar a única goiabeira da região. Algo me diz que se for mesmo filmado aqui vai dar muito ruim.

Apoio de peso

Apesar do apoio do linguista norte-americano e poços-caldense honorário Noam Chomsky, realmente não deu para os trailers de lanche da praça. Em três dias terão que sair de lá. O que me pergunto é como foi recebido a notícia entre os mandatários locais, na ocasião da divulgação da nota de apoio. Chomsky é o maior intelectual ainda vivo, ao lado de Edgar Morin, mas na cabeça das “otoridades” isso não deve significar nada. O sobrenome dele deve soar como onomatopeia de alguém comendo lanche, o que favorecia a interpretação do porquê do apoio.

Leite com pera sem imposto

Consta que foi um sucesso a rebelião do materno-infantil e as novas lideranças liberais da cidade estão sendo assediadas para compor a juventude do partido que tem nojinho de fundo partidário, mas que precisa dessa bufunfa oriunda de impostos.

Daniel Souza Luz é jornalista, escritor e revisor

Minha coluna de humor político estreou no dia 24 de março de 2023 na edição 7966 Jornal da Cidade (de Poços de Caldas/MG). O nome é um referência ao livro Notas do Subsolo, do Dostoiévski. 



Primeiro modelo de header para a coluna.

Segundo modelo de header para a coluna.

Terceiro modelo de header para coluna, já com o título definido (sugestão do editor João Gabriel, após eu ter cogitado o título Notas do Subsolo, mas tê-lo considerado muito longo).

Modelo final do header escolhido pelo editor do jornal, João Gabriel Pinheiro Chagas. 






Monday, March 20, 2023

Aquela piada não é mais engraçada

Esta crônica foi publicada na página 9 da edição 7963 do Jornal da Cidade (de Poços de Caldas/MG) em 18 de março de 2023.  

Tenho todos os gibis dos Piratas do Tietê, marcou minha infância e adolescência. Depois que a revista parou de ser publicada, continuei a ler a tirinha, de forma intermitente, na Folha de S. Paulo. No entanto, foi apenas no fim de 2022 que li um livro que compila essas tiras pós-publicação das revistas – que por sua vez também compilavam as tirinhas, além de apresentar HQs (então) inéditas. Depois de escrever, na semana passada, sobre a inadequação aos dias de hoje de uma piada contada por Paulo Caruso numa palestra que testemunhei, creio que é o momento certo para refletir um pouco mais sobre a leitura desse primeiro livrinho de bolso dos piratas, que tem um subtítulo apropriado: Escória em Quadrinhos.

O humor é algo engraçado, não só no bom sentido: parece que nunca envelhece bem. Há tiras aqui que hoje fariam Laerte ser canceladíssima. Alguém mais novo, com uma boa carga de informação sobre preconceitos, ou algum detrator facho da quadrinista que lesse esse livrinho com certeza destacariam quadrinhos que atualmente são impublicáveis. E justo da Laerte, hein? Não dava para imaginar, pois ela sempre foi mais militante, sofisticada e sutil do que seus pares.

A maioria eu nunca tinha lido, umas poucas eu me lembro de ver em outros livros/revistas/no jornal. De qualquer forma, creio que na época não me chamariam a atenção: a verdade é que preconceitos em geral eram naturalizados. E, também, eu tinha outra visão: para mim era óbvio que eram apenas piadas e que não se traduziam em ofensas no dia a dia. Tanto que, em meados da primeira década desse século, fiquei chocado com a resposta de Laerte a uma carta de uma associação de pais de autistas publicada pela Folha de S. Paulo, que o acusava (à época, ela usava o gênero masculino) de reforçar estereótipos e preconceitos contra pessoas com autismo numa história em quadrinhos: ela pediu desculpas à associação e aos ofendidos, reconhecendo que o humor trabalha, muitas vezes, com estereótipos preconceituosos. Eu pensei "que mané pedido de desculpas, que absurdo", pois havia lido a tirinha com a piada mencionando autistas (não me recordo mais dela) e não tinha achado nada de errado e que não reforçava nada preconceituoso.

Hoje, é claro, entendo melhor o poder desses discursos estigmatizantes e como eles se infiltram nas consciências e no cotidiano. Então o choque não é só com essas tiras, obviamente de meados e fins dos anos 1990 (dá para notar, pelas referências), mas também comigo mesmo, pois, mesmo se as tivesse lido quando publicadas, os preconceitos explícitos passariam batido – há até mesmo o uso do termo “pau de arara” para se referir a nordestinos, algo que, justo neste momento político, deve provocar enorme constrangimento à autora. Por essas e outras, creio que tudo isso deve ter levado à atual fase filosófica da Laerte, que talvez tenha refletido sobre aquela carta, pois notei que pouco depois, aos poucos, a tônica de seu trabalho foi mudando.

Compreendo totalmente a trajetória artística dela, que fique óbvio que não defendo cancelamentos tendo em vista comportamentos pretéritos já superados, e a mudança de postura é notável. O mundo não ficou mais chato, ao contrário do que prega o clichê preguiçoso dos reacionários, muito pelo contrário: ele força humoristas a saírem dos lugares-comuns rasteiros para serem engraçados de verdade.

Um dia espero ler o segundo volume dessa compilação, mas já ciente de que o contexto não é o mesmo do qual me recordava – de que Laerte seria diferente de Ziraldo, do Verissimo, de Millôr e dos outros gênios do humor do mesmo naipe no quesito teste do tempo. Ressalte-se também que não creio, claro, que o livro deveria deixar de ser editado como está, pois é o retrato histórico de uma época, mas, para piorar, li uma edição de 2008 e creio que é republicação de uma edição mais antiga. Olhando atentamente para a arte, os pixels são evidentes, pois são digitalizações de baixa qualidade.

Todas essas reflexões são necessárias, mas é aquilo: as piadas que envelheceram bem levaram-me, boa parte delas, às gargalhadas. E dá-lhe violência gratuita sanguinária e rum, afinal são os Piratas do Tietê.

Daniel Souza Luz é revisor, escritor e jornalista

P.S.: fiz quatro pequenas alterações no texto em relação à publicação no jornal, todas para eliminar palavras repetidos ou para acrescentar outras que deixassem mais claro o que eu queria dizer; nenhuma das alterações altera o sentido do texto original, que, por sua vez, é um refinamento das impressões que escrevi no Good Reads pouco depois da leitura do livro. 



Monday, March 13, 2023

A Anedota Perdida

Esta crônica foi publicada na página 8 da edição 7958 do Jornal da Cidade (de Poços de Caldas/MG) em 11 de março de 2023. 

Paulo Caruso faleceu, aos 73 anos, há uma semana. Uma perda inestimável para o humor e a inteligência do Brasil. Chico Caruso, seu irmão gêmeo, segue na ativa. Haverá rodízio de cartunistas no programa de entrevistas Roda Viva, da TV Cultura, para tentar substituir o insubstituível. Paulo desenhava ao vivo para o programa desde 1986. O primeiro será Jean Galvão e a entrevistada, apropriadamente, será a quadrinista Laerte já nesta segunda-feira, dia 13. Fica aí o aviso para quem ler essa crônica a tempo.

No entanto, não é sobre o presente e o futuro que quero falar. O que desejo mesmo é me lembrar de 29 de abril de 2012. De tardezinha naquele dia fui assistir a uma palestra sobre humor e quadrinhos com Paulo Caruso, o quadrinista Caco Galhardo e o humorista e desenhista Reinaldo Figueiredo – este último mais conhecido como integrante do Casseta e Planeta, no qual fazia a impagável caracterização de Itamar Franco, quando imortalizou o bordão “É pro Fantástico?”. Galhardo tem (ou tinha, não sei) familiares morando em Poços de Caldas e, pelo que sei, intermediou a vinda dos outros dois para a Flipoços.

Na palestra, em meio a muitas risadas, trataram de um tema premente e que hoje é tido como “mimimi” pelos fachos: até onde iria o limite do humor e como não incorrer em preconceitos. O modelo baseado em homofobia, misoginia e racismo já estava desgastado e, bem, jamais deveria ter sido tolerado. Fato é que todos já praticaram, antigamente havia menos consciência a respeito ou achava-se que a liberdade de expressão permitia qualquer discurso ofensivo a pessoas fragilizadas. Permitir, sempre permitiu e ainda permite, mas cada um que arque com as consequências.

Chegou-se à conclusão de que a solução era fazer piada inteligente com os preconceitos e não os reforçar. Então Paulo Caruso contou uma piada da qual nunca me esqueci, pois o público e os palestrantes caíram na gargalhada e eu também. Era assim, só me escapa um detalhe (o time mencionado, mas creio que era uma carioquice, então vou chutar): “O sujeito viu um anão negro vindo na calçada, quando chegou mais perto reparou que ele usava uma camiseta do Botafogo e que tinha trejeitos. Quando passou por ele, notou que o anão também usava um kipá. O sujeito não resistiu e correu atrás dele para comentar: ‘Desculpa falar, mas notou que você é o estereótipo de todas as piadas?’ e o anãozinho respondeu, virando o pulso: ‘Usted ainda no lo sabes el mejor’”. Gostaria de dizer que foram as piadas de argentino que meu amigo Roberto Fernandes Júnior contava na adolescência que me fizeram rir, mas o fato é que sou de uma geração bem desrespeitosa. E essa piada, no fim das contas, é muito preconceituosa. Ainda não tinha aparecido a dupla Key and Peele, que fazia piadas engraçadíssimas detonando racistas e preconceitos em geral. Não tem ninguém do meu tempo que jamais deu uma escorregada. E vamos sentir muita falta do Paulo Caruso. 

Nunca vi essa piada em lugar nenhum, nem mesmo na web. Mesmo correndo o risco de ser cancelado onze anos depois, achei melhor registrá-la. Meu compromisso é com o jornalismo e a literatura. Mal aí.  

Daniel Souza Luz é escritor, jornalista, professor e revisor


Paulo Caruso desenhando no Roda Viva em 2009. Foto de Sílvio Tanaka/TV Cultura, reproduzida aqui via Creative Commons. 

Paulo Caruso em 2009. Foto tirada por Silvio Tanaka/TV Cultura e reproduzida aqui via licença Creative Commons